Em recente decisão, o juiz Sandro Cássio de Melo Fagundes, da 28ª Vara Cível da comarca de Goiânia, autorizou um hospital à realização da imediata de transfusão de sangue em um paciente que se encontra internado na unidade, com suspeita de infecção por Covid-19. A transfusão foi negada pelos familiares, por motivo de crença religiosa, “independentemente de assinatura de termo de consentimento”.
O hospital alegou, em síntese, que o paciente se encontra internado em coma em Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) desde o dia 19 de maio, com quadro de Síndrome Respiratória Aguda Grave, com suspeita clínica e radiológica de infecção por Covid-19 e que a equipe médica lhe prescreveu transfusão de sangue em razão de seu grave quadro de anemia, que se não for realizada com urgência poderá levá-lo a óbito.
Para o juiz, “os documentos acostados nos autos conferem, por si só, a probabilidade do direito alegado na petição inicial”. Conforme ressaltou, o direito à liberdade religiosa do requerido, embora seja resguardado pela Constituição Federal, não é absoluto, pois o seu exercício encontra limite nos demais direitos fundamentais ali também resguardados, tais como o direito à vida e à saúde. “E analisados os interesses ora em choque, tem-se que o direito à vida deve sobrepor ao direito a crença religiosa, sob pena de levar o requerido a óbito”, pontuou o magistrado.
Prosseguindo, o juiz Sandro Cássio de Melo Fagundes observou que não bastasse isso, o homem encontra-se em coma, de modo que não possui plenamente suas faculdades mentais para optar neste momento pela prevalência de sua liberdade religiosa em detrimento de sua própria vida. “De fato, caberia prevalência da vontade do paciente quanto à sua crença religiosa se estivesse em plena capacidade de fazê-lo, que não é o caso dos autos”, disse.
Conforme salientou o magistrado, o profissional da área de saúde tem o dever de empreender todas as diligências necessárias ao tratamento do paciente em caso de iminente perigo de morte, independente de consentimento do paciente ou de seu representante legal (artigos 22 e 31 do Código de Ética Médica). “E, por todos esses motivos, também é cristalino que o perigo da demora na prestação jurisdicional definitiva pode causar prejuízo de difícil reparação ao requerido que se encontra internado em estado grave no hospital requerido, de modo que a negativa ao referido pleito geraria risco à manutenção de sua vida”. Processo nº 5263550.17.2020.8.09.0051. (Texto Lílian de França – Centro de Comunicação Social do TJGO) Disponível em: https://www.tjgo.jus.br/index.php/institucional/centro-de-comunicacao-social/20-destaque/19956-justica-autoriza-hospital-a-realizar-transfusao-de-sangue-em-paciente-em-coma-com-suspeita-de-covid-19-negada-pela-familia-por-motivo-religioso
Com todo respeito à decisão e à atuação dos médicos frente à tamanho dilema, a análise acerca de recusa de tratamentos encontra respaldo legal, no caso especificamente, essa análise deve ser feita na perspectiva da vida social do paciente, não apenas da vida biológica. O impacto social na vida dessas pessoas é gigantesco, cruel. Muitas dessas pessoas deixam de ser quem sempre foram.
Podemos observar tanto o paternalismo médico como do Estado, que deixa de respeitar a vontade do outro impondo aquilo que entende ser o correto. Ou seja, o princípio da autonomia é completamente afrontado, sob a alegação que o direito à vida deve sobrepor ao direito à liberdade religiosa.
Com a devida vênia, a Constituição Federal da República assegura o direito à vida, não o dever de viver. Até quando essas pessoas terão seus direitos violados por aqueles que não conseguem enxergar além do seu universo?
São temas como este que carecem de debates, compreensão, e acima de tudo, respeito.
O próprio Conselho Federal de Medicina (CFM) reconhece a necessidade de alteração na conduta frente a transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová, cita a evolução ética, moral, jurídica e científica, assim como sugere a revogação da Resolução 1021/1980, e a criação de uma nova Resolução, conforme Parecer CFM 12/2014, de relatoria do Conselheiro Carlos Vital Tavares Corrêa Lima.
Acredito que a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 618) ajuizada no Supremo Tribunal Federal (STF) pela Procuradoria Geral da República (PGR), trará considerável avanço acerca do tema. Ainda há esperanças!
São decisões fáceis? De modo algum, tomadas de decisões difíceis fazem parte do dia a dia da medicina e do direito. Só precisamos respeitar o próximo e aquilo que realmente importa para ele, nos abstermos das nossas convicções e prol do outro.
" A vida flui melhor para todos quando respeitamos o que é sagrado para o outro".